As patentes de medicamentos são um tema tão delicado que chegaram a provocar a revogação de um dispositivo da própria Lei de Propriedade Industrial (LPI): o parágrafo único do artigo 40. A decisão veio com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5529, em 2021, sob relatoria do ministro Dias Toffoli.
Para entender toda essa polêmica, é essencial começar pelo básico: qual é o tempo de vigência de uma patente no Brasil?
Quanto tempo dura uma patente?
De maneira geral, a patente no Brasil tem um prazo fixo:
- 15 anos para modelos de utilidade
- 20 anos para patentes de privilégio de invenção
No entanto, quem atua na área sabe: o INPI nem sempre é ágil nos processos de exame, podendo levar até mais de 11 anos para analisar um pedido, especialmente quando envolvem instâncias recursais.
Foi por isso que, ao criar a LPI, previu-se o parágrafo único do artigo 40, que permitia prorrogar o prazo da patente caso o exame demorasse demais. Na prática, isso significava:
- Mais 10 anos de vigência após a concessão para patentes de invenção
- Mais 7 anos para modelos de utilidade
Ou seja: uma patente que demorasse 11 anos para ser examinada poderia ter mais 1 ano extra de vigência, garantindo um mínimo de 10 anos de exclusividade após a concessão.
E onde está o problema?
Aparentemente, esse dispositivo fazia sentido, afinal o titular não pode ser prejudicado pela lentidão do Estado. Mas é justamente aí que começa a polêmica nas patentes farmacêuticas.
Um relatório de 2021 apontou que praticamente todas as patentes concedidas para a indústria farmacêutica naquele ano contavam com a prorrogação prevista no parágrafo único do artigo 40. Em alguns departamentos do INPI, mais de 80% dos pedidos de fármacos aplicavam essa extensão.
Isso levantou um alerta: e se parte desses atrasos fosse deliberada?
Você pode se perguntar: por que uma empresa não gostaria que seu pedido de patente fosse aprovado logo? A resposta é simples e estratégica: por que ter 20 anos de exclusividade se é possível ter 30?
Multinacionais farmacêuticas descobriram uma forma de maximizar o tempo de monopólio sobre um medicamento, postergando a análise do INPI para ganhar ainda mais anos de proteção e lucros.
De acordo com o Tribunal de Contas da União, isso provocou um aumento de 35% nos preços de medicamentos no Brasil, justamente por impedir a entrada de genéricos no mercado.
Um estudo da UFRJ apontou prejuízo de quase R$ 200 milhões aos cofres públicos, somente com o pagamento de royalties de nove medicamentos adquiridos pelo Estado.
Essa prática não é exclusiva do Brasil. Um relatório da organização internacional I-MAK mostrou que as 12 drogas mais vendidas nos EUA em 2017 sofreram aumentos de até 68% no preço entre 2012 e 2017 também por causa do bloqueio à produção de genéricos.
A diferença é que, no Brasil, o parágrafo único do artigo 40 dava ainda mais fôlego a essas estratégias, algo que não existe em outras legislações internacionais.
O impacto na saúde pública
Pense em um caso hipotético: uma vacina contra o câncer com pedido de patente iniciado em 2012. Se o exame só fosse concluído em 2021 e ainda indeferido, esse processo poderia permanecer em trâmite até 2022 ou mais, aguardando recurso.
Se ainda vigorasse o parágrafo único do artigo 40, essa patente poderia ser estendida por mais 10 anos, mesmo que o exame definitivo ainda nem tivesse ocorrido!
Mesmo sem a concessão final, a data do pedido já conta para fins de indenização futura, caso a patente venha a ser concedida. Ou seja, há um risco real para laboratórios que queiram produzir genéricos e as multinacionais sabem usar esse medo a seu favor.
Esse tema é tão sério que governos como o da Índia adotaram medidas duras para evitar abusos em patentes de medicamentos. Durante a epidemia de HIV nos anos 2000, a solução foi clara: produzir genéricos.
Com isso, o custo do tratamento caiu de US$ 350 mil para US$ 10 mil por paciente ao ano, segundo estudo da Médicos Sem Fronteiras, salvando milhares de vidas.
Patente: vilã ou proteção necessária?
Não devemos considerar as patentes de medicamentos apenas como vilãs. Há todo um apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico que só é viabilizado graças à proteção conferida pelas patentes aos esforços e investimentos das grandes multinacionais do setor. No entanto, até que ponto essa proteção é válida? E o que acontece quando ela é usada de forma abusiva?
Uma ferramenta importante para conter abusos é a licença compulsória, que pode ser aplicada quando a comercialização de um produto não atende à demanda do mercado.
Ainda assim, esse debate envolve interesses políticos, pressões de empresas estrangeiras e lacunas de informação.
Por isso, o conhecimento sobre patentes e a atuação de profissionais especializados são fundamentais para proteger a saúde pública e o equilíbrio econômico. A revogação do parágrafo único do artigo 40 da LPI foi um marco nesse sentido e só aconteceu graças ao trabalho conjunto de grandes especialistas da área, na ADI 5529.
Este artigo foi adaptado a partir do conteúdo em vídeo publicado no canal do Portal Intelectual no YouTube. Assista na íntegra – Clique aqui.